Resumo

Ter clareza do complexo sistema de limpeza urbana necessário às nossas cidades é decisivo para se educar a população. Não é conveniente reforçar crenças em soluções milagrosas que nos afastam do necessário enfrentamento técnico-cultural desse problema que a todos afeta.

É da nossa tradição avaliar os serviços públicos de limpeza urbana por dois parâmetros básicos: a) coleta eficiente do lixo doméstico; b) varrição metódica de logradouros públicos (ruas, praças, etc.), em especial os de maior visibilidade. Recentemente também a existência de um sistema de coleta seletiva de lixo passou a ser um ponto ressaltado e valorizado.

Estes parâmetros, porém, não dão conta da complexidade da limpeza urbana e não são suficientes para uma avaliação criteriosa desse serviço prestado pelas municipalidades, não só nas médias e grandes cidades, mas principalmente em nossas metrópoles. Contudo, essa percepção limitada acaba colaborando indiretamente para a permanência da difícil situação que o Brasil enfrenta, como um todo, na gestão de seus resíduos urbanos.

A ausência de uma visão mais crítica e de cobranças bem fundadas pela população facilita a manutenção de serviços inadequados e o desperdício de recursos, para não falar do crescimento da corrupção no setor. Neste posicionamento limitado se deixa de lado um aspecto decisivo, que é a preocupação com a destinação final do lixo, que não pode, hoje, abrir mão dos aterros sanitários.

Quando esta peça fundamental do sistema de limpeza não existe, temos a utilização dos vazadouros e, na melhor das hipóteses, dos aterros controlados. Nos primeiros o lixo é jogado indiscriminadamente a céu aberto, sem nenhum cuidado. No segundo, temos minimamente o recobrimento dos resíduos depositados. Em ambos são bastante conhecidos tecnicamente os conseqüentes impactos ambientais e na saúde pública. Só nos aterros sanitários – obra complexa de engenharia – encontraremos o tratamento do chorume (líquido que percola através do lixo), dos gases (sobretudo o metano) e o encerramento adequado da área, uma vez esgotada. Cabe salientar que, por falta de planejamento, pelos tabus ligados às pessoas e áreas relacionadas ao lixo, é cada vez mais difícil encontrar locais disponíveis para aterros sanitários. E quanto mais longe estiverem das áreas urbanas, mais caro se torna o sistema, em razão do transporte.

A destinação final é também uma parte onerosa do sistema, mas necessária. Fica, porém, distante do olhar do contribuinte e pouco destaque se dá à sua importância. A desculpa de que falta dinheiro para construí-los não se justifica, principalmente se atentarmos para o enorme desperdício, existente nas últimas décadas, de recursos financeiros com tecnologias não adequadas, notadamente as chamadas usinas de compostagem e reciclagem. Só no Estado do Rio de Janeiro estima-se um gasto de mais de 100 milhões de reais, com unidades que em muitos casos nem chegaram a entrar em funcionamento.

Qual era e é ainda a falácia dessas usinas? A de que resolveriam por completo o problema do lixo, com seu aproveitamento quase total. Com isto não haveria necessidade dos aterros sanitários. Os técnicos sabem que na melhor das hipóteses teríamos nestas usinas cerca de 40% de rejeitos, além de composto orgânico de baixa qualidade e dependência de um complexo e instável mercado para os materiais recicláveis industrialmente (papel, vidro, plástico e metais). Em nosso país, muitos produtos considerados recicláveis, por razões as mais diversas, não têm mercado ou têm com restrições.

Ao confundir a questão do destino final (aterros sanitários) com formas de tratamento dos resíduos confundimos de forma irresponsável a opinião pública. Grande parte dos profissionais dos meios de comunicação acaba, inadvertidamente, colaborando para essa situação. Geramos lixo e temos de dar destino a ele. Certamente diminuir a quantidade de lixo gerado e reaproveitá-lo ao máximo são metas mais do que defensáveis, são necessárias. Mas é importante ter em mente que esbarram em sérios obstáculos de ordem econômica, técnica e cultural. Primeiro é preciso ter presente que a gestão de resíduos é cara tanto no que concerne à coleta quanto ao tratamento e destino final. Por outro lado, estamos longe de termos nossos serviços de limpeza financiados adequadamente pelos seus usuários, como já ocorre em alguns países. Assim como acontece com os serviços de fornecimento de água, esgoto e luz, os serviços de coleta, tratamento e destinação final do lixo devem ser financiados pelos usuários de acordo com a quantidade de lixo gerada. E há métodos para se auferir isto.

Com as insuficientes taxas de lixo embutidas no IPTU, deixamos de ter, via de regra, suporte financeiro para dar conta do problema como um todo. Isto torna ainda mais grave a irresponsabilidade com o desperdício de recursos no setor. Uma das conseqüências é que mesmo o tradicional serviço de coleta e varrição acaba não sendo feito em áreas desprotegidas política e socialmente. E esta restrição acaba gerando efeitos perversos. Obstrução de rios e canais, inundações, deslizamentos de encostas em áreas de morros (onde vive a população mais pobre). De alguma forma o lixo acaba reaparecendo.

É importante o tratamento? Não resta dúvida. Mas de forma responsável e realista. A coleta seletiva é fundamental para um reaproveitamento adequado tanto da matéria putrescível de nosso lixo através da compostagem, como de outros materiais pela reciclagem. Quanto mais eficiente e detalhada forem as separações prévias, melhor. Isto é ainda mais importante para o material destinado à compostagem. Não se trata, porém, de uma panacéia, já que até mesmo o mercado para esses produtos não é, como dissemos, garantido. Não devemos jamais nos esquecer que o Brasil já é um dos maiores recicladores mundiais, conseqüência mais do enorme contingente de miseráveis que se ocupam da catação de lixo nas ruas e lixões, do que de processos formais de coleta seletiva. Propostas de coleta seletiva voluntária em pontos estratégicos das cidades com o encaminhamento do material recolhido para grupos organizados de catadores é um passo importante. Eles se encarregariam do trabalho de triagem e comercialização com vantagens para os próprios e para a municipalidade. A quantidade de material gerado por podas, restos de feiras e restaurantes é significativo. Podem servir, com baixo custo, para o início de ações de compostagem visando um composto de boa qualidade.

É importante se passar para o cidadão, desde cedo, a complexidade da limpeza urbana e até mesmo seus truques e subterfúgios. Enquanto tivermos um tratamento da questão de forma equivocada, estaremos comprometendo ainda mais a difícil situação financeira dos municípios, e por que não, facilitando que o setor de resíduos, por falta de interesse e informação da população, se transforme em campo propício para a corrupção. Estima-se que algumas cidades chegam a gastar com seus resíduos 20% do seu orçamento, e sem resolver adequadamente o problema. As desigualdades sociais e a falta de controle social em áreas significativas de nossas grandes cidades e metrópoles agravam a situação. Nelas, como já dito, nem mesmo serviços básicos de coleta e varrição são satisfatoriamente executados. A má qualidade dos serviços contribui para uma cultura de não participação, de pouco envolvimento das populações – se o poder público não cumpre o seu papel, porque devo me preocupar? – aumentando a sujeira das cidades e os custos dos serviços.

Só poderemos educar adequadamente nossos cidadãos se tivermos clareza do que deve ser transmitido. Educá-los na expectativa de soluções fáceis ou mesmo mágicas é só agravar a difícil situação dessa área onde, cabe ressaltar, já nos atrapalham há séculos, interdições e tabus notadamente ligados ao nosso receio da morte. Afinal, a degenerescência, a decadência, a deterioração de nosso corpo, nossas obras e utensílios não são fáceis de ser enfrentadas. É mister que o façamos de forma consciente e técnica.

*Artigo publicado na Revista 'Ciência Hoje' vol. 38, junho de 2006.

Maiores informações vide: E. Eigenheer, J. A. Ferreira, R. R. Adler. Reciclagem: mito e realidade. Rio de Janeiro: In-Fólio, 2005.

Lixo: compreender para esclarecer

Emilio Maciel Eigenheer João Alberto Ferreira