INTRODUÇÃO

O conhecimento e a compreensão de aspectos históricos e econômicos do que se entende hoje por reciclagem e de sua inserção na sociedade industrial são importantes para que ela possa ser praticada de forma a atingir os objetivos de caráter ambiental estabelecidos nas últimas décadas. A recuperação de materiais do lixo é uma prática antiga. Na Inglaterra, por exemplo, no início do século XV, o lixo – então predominantemente orgânico – era vendido a fazendeiros e jardineiros, que o utilizavam em criações de animais e plantações. A compostagem é praticada desde antes da Antigüidade clássica. Também a recuperação dos metais e outros materiais como papel, trapos, etc., é uma atividade secular. O que vem movendo esses esforços é, via de regra, a escassez e o custo de produção dos materiais. Isto é decisivo em tempos de guerra.

Também no Brasil são antigas as práticas de recuperação. Notícia do Jornal do Commercio, de 05/11/1896, já menciona as atividades de catação, de portugueses e espanhóis, no lixão da Ilha de Sapucaia, na Baía da Guanabara, para suprir indústrias de reaproveitamento e empresas reutilizadoras. "Trapos, vendem às fábricas de papel; garrafas, às ditas de cerveja; ferros e metaes, às fundições; folhas de flandres, aos funileiros; cacos de louça e crystaes, às fábricas de vidro". É, porém, a partir de 1960 que programas mais amplos, inclusive de alcance nacional, direcionados à recuperação de embalagens, começam a ser implementados, na perspectiva de contribuição para a gestão de resíduos sólidos (lixo). Como exemplo temos o Keep América Beautiful nos EUA.

A bibliografia americana sobre a gestão de resíduos sólidos da década de 1970-1980 destaca a importância econômica da atividade de recuperação de materiais do lixo, ou seja, da coleta seletiva . É importante, porém, destacar que, nos meados da década de 70, a maior parte dos programas de coleta seletiva de papel que haviam sido implementados em cidades americanas, dois ou três anos antes, foram desativados quando os preços pagos pelas indústrias tiveram forte retração e a atividade tornou-se economicamente deficitária (APWA, 1975). Assim, o que chamamos de reciclagem e atividades de reutilização são uma atividade econômica que se impôs originalmente a partir de primados econômicos e sociais, notadamente de escassez, e não como premissa da limpeza urbana ou de proteção ambiental. Recolher materiais para vender sempre foi atividade de pessoas necessitadas – o que não impedia, até algum tempo atrás, que mesmo crianças de classe média ganhassem uns trocados vendendo materiais, recolhidos em família, nos ferros-velhos. O Brasil é hoje um grande reciclador, mais devido ao enorme contingente de necessitados que se dedicam à tarefa de catação, nas ruas e lixões , do que a programas amplos e organizados de gestão de resíduos sólidos. Ao contrário, o grande reciclador detém indicadores negativos alarmantes na gestão de resíduos. A atividade de catadores, seja ela realizada em lixões, em aterros e/ou logradouros públicos é, deve-se dizer, amplamente praticada na América Latina e nos países não desenvolvidos.

Atualmente, com o avanço da discussão ecológica, do desenvolvimento sustentável e da gestão racional de resíduos sólidos, a reciclagem ganhou mais visibilidade. Passou a ser mesmo um modismo e, em conseqüência disto, surge uma série de graves equívocos. Isto se dá sobretudo quando se passa a idéia de que a reciclagem se justifica por si mesma. Criou-se a idéia errônea de que os processos de reciclagem são, a priori, ambiental e sócio-economicamente corretos. Entre nós, paradoxalmente, a despeito de termos bons índices de recuperação de materiais, existem movimentos no sentido de se disseminar a coleta seletiva como parte da gestão de resíduos, unicamente voltada para a recuperação de embalagens, sem avaliação de custos e maiores preocupações com os aterros sanitários. Discutir, pois, o papel da reciclagem industrial e da coleta seletiva no contexto da gestão integrada de resíduos sólidos se faz necessário.

RECICLAGEM E COLETA SELETIVA

Não raro estes dois termos têm sido usados erroneamente como sinônimos. Escolares e pessoas em geral afirmam com freqüência estarem "fazendo reciclagem em casa ou na escola", quando na verdade estão participando de atividades de separação prévia de materiais que serão coletados seletivamente para facilitar seu encaminhamento não apenas para a reciclagem industrial, como também – ainda raro entre nós – para a reutilização. Até mesmo, às vezes marotamente, unidades de triagem e compostagem de resíduos sólidos são chamadas de usinas de reciclagem. A reciclagem é hoje um procedimento industrial de reaproveitamento da matéria-prima para a produção de novos produtos (similares ou não). Já a coleta seletiva é um procedimento que facilita a reciclagem industrial, mas não só ela como também o reaproveitamento da fração orgânica por meio da compostagem, a geração de energia a partir do lixo e mesmo a reutilização de inúmeros materiais. Um indicador de que a reciclagem industrial, e não a gestão de resíduos sólidos, é a prioridade da coleta seletiva no Brasil, é o fato de estar prioritariamente voltada (ainda na tradição dos catadores) para materiais recicláveis. São poucas as experiências de recolhimento sistemático da fração orgânica do lixo para ser compostada. Esta falta de clareza gera no grande público uma grave confusão, que os especialistas têm a obrigação de dissipar, a não ser que desejem fazer vista grossa aos que lucram com as distorções daí oriundas.

RECICLAGEM E GESTÃO DE RESÍDUOS

É comum buscar-se nos países desenvolvidos a inspiração para os programas de coleta seletiva de lixo, onde se encontram inseridos na gestão integrada de resíduos em que a coleta domiciliar, o tratamento e o destino final dos resíduos são bem cuidados. A coleta seletiva entra aí como mecanismo facilitador de um complexo sistema em que a reciclagem industrial é uma das partes. Outras são a compostagem, a incineração com ganho de energia, a reutilização, etc. O cidadão separa não só materiais em casa, como também descarta materiais em equipamentos (quase sempre contenedores fechados) alocados em supermercados, praças e até nas entradas de quase todos os aterros sanitários, neste caso por sua conta e em seus próprios veículos. Um dos exemplos mais significativos desta combinação de procedimentos é o Sistema Dual (DSD) na Alemanha.

Os custos desses sistemas são altos e precisam ser pagos pelo contribuinte, em muitos casos de acordo com a quantidade de lixo produzido. Esta cobrança é decisiva para o sucesso da logística operacional como um todo. O sistema de cobrança universal, por sua vez, depende, entre outros fatores, de uma sociedade organizada, educada e cumpridora das leis. Outro aspecto relevante a ser sempre levado em conta do ponto de vista ambiental é a realização do balanço entre os resultados diretos obtidos com a reciclagem de materiais e os gastos ambientais resultantes das atividades de separação, coleta, transporte e processamento dos mesmos. A legislação da União Européia prevê que até 2014 praticamente todos os resíduos deverão ser pré-processados antes da disposição final em aterros sanitários. Os materiais recicláveis e a matéria orgânica serão acondicionados em recipientes específicos, padronizados e coletados de forma diferenciada. Isto possibilitará melhores resultados na separação de materiais e na produção de um composto orgânico de qualidade superior. Desta forma é possível que os índices de reciclagem aumentem significativamente nas cidades européias. Sem falar no aumento dos custos para os usuários, profissionais da área de resíduos na Europa têm algumas dúvidas sobre os resultados da lei: 1) se a indústria será capaz de reciclar todo o material coletado; 2) se haverá mercado para ele; 3) o que será feito com tanto composto orgânico produzido (provavelmente, parte dele será usada na cobertura diária de aterros sanitários).

No Brasil são enormes as dificuldades para esse tipo de gestão e a conseqüente cobrança de taxa ou tarifa. Sequer começamos a dar os primeiros passos na padronização dos vasilhames domésticos. A maioria de nossas capitais, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro, possuem imensas áreas de pobreza, onde os veículos de limpeza mal conseguem entrar, e onde os mecanismos de multa e cobrança são inócuos. Em São Paulo, por exemplo, a atual tentativa de instituir uma taxa de lixo exclui da cobrança favelas e imóveis com o valor venal de até R$ 25.000,00. Trata-se, porém, de um imenso contingente de geradores de lixo que deverão ser financiados principalmente pela classe média. Assim, a institucionalização da coleta seletiva pelo serviço público deve ser cuidadosa, e não deve estar a serviço apenas da reciclagem, mesmo com a desculpa de geração de empregos. A reciclagem pode continuar entre nós sem a disseminação da coleta seletiva, mas esta tem seu sentido numa gestão integrada de resíduos. Programas de incentivos à separação de materiais recicláveis ou mesmo de coleta seletiva para gerar empregos e até minimizar, por meio da reciclagem, a quantidade de material destinado aos lixões e aterros, podem ser desenvolvidos. Contudo, devem ficar claros à população como se sustenta o sistema, o que se arrecada e o que se gasta. Especialmente quando há subsídios de verbas públicas.

Um aspecto que chama a atenção na relação da sociedade com a reciclagem é o equívoco, bastante propagado no Brasil, de que ela seria capaz de substituir os sistemas de destinação final do lixo. Ou seja, um bom programa de reciclagem, consolidado a partir de uma coleta seletiva eficiente, daria conta de todo o lixo de uma cidade. Não dá! Na verdade, mesmo nos países desenvolvidos, os melhores programas de coleta seletiva e de reciclagem industrial atingem índices máximos da ordem de 35% do lixo total, restando os outros 65% para os quais há que se dar outra destinação. Na Inglaterra, por exemplo, o crescimento do índice de reciclagem e compostagem passou de 7,5% para 11,2% entre 1996 e 2001 (cerca de 1% de crescimento anual), havendo descrença por parte de vários profissionais de que a meta de 33% estabelecida para 2015 possa ser atingida (Davies, 2003).

A INDÚSTRIA E A RECICLAGEM

Uma questão pouco ventilada entre nós é a capacidade de absorção das indústrias de reciclagem e o mercado para os produtos gerados. Não são conhecidos, ou pelo menos difundidos, os indicadores de capacidade das indústrias de reciclagem no Brasil. Passa-se a idéia de que basta separar que a indústria absorve. E isto não é verdade, nem aqui, nem nos países desenvolvidos. Deve-se lembrar que a viabilidade econômica da reciclagem praticada no Brasil está baseada, em grande parte, no trabalho autônomo de catadores sem direitos legais e com os quais os principais beneficiados, as indústrias, não mantêm nenhum tipo de vínculo ou responsabilidade social. Na medida em que a oferta de materiais aumentar, o preço praticado pelas empresas compradoras com certeza irá cair, aumentando a penúria (ou a sua exploração, dependendo do ponto de vista) dos catadores. Outra limitação está relacionada ao fato de produtos obtidos a partir de materiais reciclados serem alvo de (não pequenas) restrições e preconceitos, não raro incentivados publicamente. Sustentar, por outro lado, sistemas clássicos de coleta seletiva sem taxas adequadas ou tarifas de lixo é inviável.

RECICLAGEM E ARTESANATO

Outra confusão lamentável é a que existe entre atividades de artesanato com resíduos e a reciclagem. Fazer brinquedos, móveis, peças decorativas e mesmo artísticas com material descartado como lixo pode ter um benéfico valor educativo e lúdico. Contudo é extremamente negativo sugerir-se à população que isto é uma forma de reciclagem, e – o que é pior – que tem papel significativo na gestão de resíduos de uma cidade, em particular de grande porte. Também atividades de manufaturados, como por exemplo a fabricação artesanal de vassouras com garrafas Pet, devem ser apresentadas com todos os seus limites.

RECICLAGEM E POLUIÇÃO

No Brasil a reciclagem é, em geral, olhada do ponto de vista dos efeitos positivos potenciais, como a redução de consumo de energia e dos impactos ambientais associados aos processos de exploração e de produção relativos a materiais virgens (Masters, 1996). Pouca atenção é dada aos processos industriais da reciclagem em si mesmos, que nem sempre atendem aos interesses de proteção ao meio ambiente. É importante ver o processo desde o início, da coleta de materiais até o produto final da reciclagem. A utilização de água tratada para lavagem de materiais antes do acondicionamento nas residências e outros geradores, os processos de pré-preparação do material a ser reciclado na atividade industrial são apenas dois exemplos. As indústrias nem sempre estão adequadamente preparadas, muitas vezes sequer dispõem de um sistema de tratamento para seus efluentes. Em determinadas circunstâncias os custos ambientais da reciclagem podem ultrapassar os seus benefícios, transformando a indústria no principal beneficiário (econômico) em detrimento da qualidade ambiental. No Brasil estamos longe de procedimentos efetivos de fiscalização, notadamente em pequenas indústrias.

RECICLAGEM E USINAS DE TRIAGEM

Ao não explicitarmos os limites e as dificuldades da reciclagem, bem como o real papel da coleta seletiva, estamos não só colaborando com a desinformação, como também facilitando outras práticas equivocadas que vêm atrasando ainda mais a gestão de resíduos no Brasil. Em nome da reciclagem se dá ênfase, por exemplo, às controvertidas usinas de triagem que poderiam reaproveitar quase todo o lixo sem os problemas da coleta seletiva. Além disso passa-se a idéia de que estas usinas tornariam desnecessários os aterros sanitários, peça fundamental na gestão integrada de resíduos e parâmetro econômico balizador da própria coleta seletiva. Não se passa à população a informação, por exemplo, de que o lixo misturado em casa e compactado nos caminhões encontrará barreiras intransponíveis para ser novamente separado com o fim de possibilitar a compostagem e a reciclagem. O que se adquire com ele é material de baixa qualidade para a indústria e composto comprometido principalmente com a contaminação química. Além, é claro, de grande quantidade de refugo!

CONCLUSÕES

É preciso mostrar à população as dificuldades e a necessidade de uma gestão integrada de resíduos sólidos. Importa que o contribuinte saiba de seus altos custos, que precisam ser distribuídos entre os geradores de resíduos. Assim sendo, gastar adequadamente os recursos é, desde já, uma premissa básica para se caminhar em direção a uma situação mais favorável. E isto certamente se dará com maior clareza conceitual e técnica. Dar informação adequada e técnica a ONGs, associações de classe, jornalistas, professores, seria um primeiro e decisivo passo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Acurio, Guido et al. Diagnóstico de la situación del maneio de residuos solidos municipales en America Latina y el Caribe. Washington D.C.: BIRD/OPAS, 1997, p. 68.

APWA – American Public Works Association. Municpal Refuse Disposal. Danville: Interstate Printers and Publischers, Inc., 1970, pp.331-332.

APWA – American Public Works Association. Solid Waste Collection Practice. Chicago: Slavik Printing Company, 1975, pp.22-24.

Davies, David. Exploding some myths – smoke and mirrors in waste management performance. Waste Management World: ISWA-James x James, 2003, pp.63-68.

Hagerty, D. Joseph et al. Solid Waste Management. New York: Van Nostrand Reinhold Company, 1973, pp.55-56.

Masters, Gilbert, M. Introduction to Environmental Enginnering and Science. New Jersey: Prentice Hall, 1996, pp.563-564.

Zaltzman, Raul. Operational Solid Waste Manual. Morgantown: College of Engineering – West Virginia University, 1974, pp.153-154.

A reciclagem e seus equívocos

Emilio Maciel Eigenheer João Alberto Ferreira